Cultura

O Camponês Caipira

O Camponês Caipira

Por: Viola Show I Carlos Rodrigues Brandão - Ribeirão Preto - SP

26/11/2013

Caapora, Caipora, Caipira  

“Camponês”, “caboclo”, “caipira”, “roceiro”, “sertanejo”, “capiau”... com que nomes e símbolos reais ou ilusórios essa gente rural dos sertões de ontem e de agora habita o seu imaginário e o meu, leitor? Que homem caipira real existiu e existe ainda hoje em São Paulo e que personagem dele há dentro de cada um de nós? O lavrador rústico cuja lavoura substituiu a dos índios? O Jeca Tatu? O povoador de sucessivas Ã¡reas de fronteira? Os tipos engraçados de Mazzaropi e Alvarenga-e-Ranchinho? 

Ora, de alguns anos para cá o rádio e o disco, o cinema e a televisão multiplicam tipos sertanejos que às vezes quase tornam modernos e acostumados com a cidade os lavradores caipiras do passado. Entre Sérgio Reis, Milionário e José Rico e os velhos violeiros de “moda” e “cururu” há uma distância muito grande. Assim como a que, às avessas, existe entre o relato apressado que viajantes e cronistas escreveram a respeito dos habitantes rurais da Província de São Paulo e os estudos recentes que com menos pressa e preconceitos procuram agora compreender não só os trabalhadores caipiras, como também outros tipos de sujeitos subalternos de enxada e arado que primeiro os acompanharam e, depois, começaram a substituí-los: o sitiante, o camarada, o colono, o boia-fria.

Na primeira parte desta pequena viagem à pessoa e ao mundo do lavrador caipira de São Paulo, quero aos poucos recuperar a imagem que escritos do passado fizeram dele, ao transportá-lo de uma figura de sombra à beira do caminho entre índios e senhores à posição de ator subalterno de sua própria história. Na verdade, das primeiras leituras pouca coisa sobra que recomende o nosso caipira. Saltando do verbete de alguns dicionários às impressões de viagem de Saint-Hilaire, sugiro que uma trajetória de desvendamento da condição, da identidade e do modo de vida do caipira seja feita com leituras que vão de Monteiro Lobato a Cornélio Pires. A Maria Isaura Pereira de Queiroz, José de Souza Martins e Maria Sylvia de Carvalho, por exemplo. Trata-se primeiro de corrigir uma imagem e, depois, de explicar que condições geraram uma gente assim. 

Quando este primeiro caminho estiver percorrido, podemos voltar aos mesmos lugares de sertão e rever o caipira com os nossos próprios olhos. Observá-lo através de sua vida, no lugar onde ela existe no cotidiano. Que, então, uma cultura caipira que quase sempre conhecemos aos pedaços e através do que há nela de pitoresco apareça através de como ela realmente é feita. Através do trabalho com a terra e de como ele e sua condição criam e recriam modos próprios, familiares e comunitários de ser, viver, pensar, crer e conviver. 

Já que mais do que tudo o nome é a janela da Identidade, comecemos por ele. Às vezes num dicionário poucas palavras chegam para definir o caipira: 

“Roceiro, matuto, acanhado, sem trato na cidade”. (Bueno) 

No mesmo dicionário, “camponês” é “aquele que habita ou trabalha no campo; próprio do campo; rústico”. (idem) Quando o dicionário é mais cuidadoso na escolha dos nomes do caipira, em nada isso melhora a adjetivação de sua identidade. Assim, no â€œAurélio”, ele aparece da seguinte maneira: 

“Habitante do campo ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de convívio e modos rústicos e canhestros (sin.) sendo alguns regionais: araruama, baba quara, babeco, baiano, baiquara, beira-corgo, beiradeiro, biriba ou biriva, botocudo, bruaqueiro, caapora, caboclo, caburá, cafumango, caiçara, cambembe, camisão, canguaí, canguçu. capa-bode, capiau, capicongo, capuava, capurreiro. casaca, casacudo, casca-grossa, catatuá, catimbá, catrumano, chapadeiro, curau, curumba, groteiro, guasca, jeca, mambira, mandi ou mandim, mandioqueiro, manojuca, maratimba, mateiro, matuto, mixanga, mixuango ou muxuango, mocorongo, moqueta, mucufo, pé-dum, pé-no-chão, pioca, piraguara, piraquara, quejeiro, restingueiro, roceiro, saquarema. sertanejo, sitiano, tabaréu, tapiocano, urumbeba ou urumbeva ..“. (Ferre ira, Aurélio Buarque de Hollanda, Pequeno Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa) 

Dos dicionários gerais para os especializados a mudança é pequena- Assim, Luís da Câmara Cascudo sugere que além de tímido e despreparado, o caipira pode ser um sujeito pouco confiável. 

“Homem ou mulher que não mora em povoação, que não tem instrução ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público (...) Habitante do interior, canhestro e tímido, desajeitado, mas sonso...” (Cascudo, Luís da Câmara, Dicionário do Folclore Brasileiro) 

Saint-Hilaire, cuja viagem entre caipiras paulistas nos espera um pouco adiante, ao descrevê-los na cidade de São Paulo não consegue deles um retrato melhor. O próprio nome que lhes dão os homens da cidade — caipiras — seria “injurioso” e possivelmente derivado de um nome semelhante, usado para chamar tipos de “demônios malfazejos”. 

Saint-Hilaire, cuja viagem entre caipiras paulistas nos espera um pouco adiante, ao descrevê-los na cidade de São Paulo não consegue deles um retrato melhor. O próprio nome que lhes dão os homens da cidade — caipiras — seria “injurioso” e possivelmente derivado de um nome semelhante, usado para chamar tipos de “demônios malfazejos”. 

Entre todos os esforços vocabulares que encontrei para afinal dizer quem é o caipira, apenas em outros dois pesquisadores do assunto que também nos esperam adiante há um esforço notável para explicar a idéia de “caipira”, seja ainda através da análise do nome, seja pela indicação de características próprias, ligadas à localização, ao modo de vida e ao exercício do trabalho agrícola. Um deles é Cornélio Pires e o outro, Antônio Cândido. 

“Por mais que rebusque o ‘étimo’ de ‘caipira’ nada tenho deduzido com firmeza. Caipira seria o aldeão; neste caso encontramos o tupi-guarani â€˜capiâbiguâra’. Caipirismo é acanhamento, gesto de ocultar o rosto: neste caso temos a raiz ‘caí’ que quer dizer: ‘gesto de macaco ocultando o rosto’. â€˜Capipiara’, que quer dizer o que é do mato. Capiã, de dentro do mato: faz lembrar o ‘capiau’ mineiro. ‘Caapi’ — trabalhar na terra, lavrar a terra — â€˜caapiára’ lavrador. E o caipira é sempre lavrador. Creio ser este último caso o mais aceitável, pois ‘caipira’ quer dizer ‘roceiro’ isto é lavrador...” (Pires, Cornélio, Conversas ao Pé do Fogo) 

A explicação de Cornélio Pires é importante porque faz a fronteira onde a palavra e a pessoa existem definidos por sinais de menos e o lugar onde outras razões, como a do próprio trabalho de que provêm, traçam o nome e a identidade. De uma primeira safra de nomes a respeito de quem é, o caipira sai como o viu e pensou uma gente letrada e urbana. Por isso, comparado com o cidadão, o citadino livre do trabalho com a terra, o caipira sai dito pelo que não é e adjetivado pelo que não tem. Ele é ponto por ponto a face negada do homem burguês e se define pelas caricaturas que de longe a cidade faz dele, para estabelecer, através da própria diferença entre um tipo de pessoa e a outra, a sua grandeza. Separado do trabalho e de uma cultura derivada de um tipo de trabalho, o caipira paulista define-se primeiro por ser naturalmente do lugar onde vive: o campo, a roça, o sertão, a mata, o lugar oposto à cidade. E quem “não mora em povoação” e, portanto, aquele que não possui o preparo e as qualidades do homem da cidade, o civilizador, de quem a seu modo o caipira escapa, tanto quanto o índio, e mais do que o negro. Se o seu lugar de vida é o contrário do da cidade e o seu trabalho é invisível, por ser o oposto ao “da cidade”, o seu modo de ser e a cultura são o oposto do que a cidade considera “civilização”, “civilizado”. Por isso, a meio caminho entre o bugre e o branco, o “caipira”, “caboclo” é ignorante, “sem trato”, ou seja, sem aquilo que, ao ver do tempo, apenas a distância do cativeiro da terra pode atribuir ao homem â€œde trato”, o senhor e seus emissários.

Em um estudo sobre o dialeto caipira, Ada Natal Rodrigues traz o depoimento de Antônio Cândido. Ele é o “vivente de um território indefinido” com formas próprias de fala e visão de mundo. (Rodrigues, Ada Natal, O Dialeto Caipira) O seu mundo cobre “um lençol de cultura caipira, com variações locais, que abrangia partes das capitanias de Minas, Goiás e mesmo Mato Grosso”. (Cândido, Antônio, Os Parceiros do Rio Bonito) Uma verdadeira “civilização caipira” cobriu no passado áreas extensas, segundo Pascuale Petrone. Mais do que sujeitos e famílias indigentes, dispersos pelas beiras de estrada onde os viajantes os viam, caipiras lavradores de frentes pioneiras de ocupação do território paulista esparramaram bairros rurais e povoados maiores por:“todo o litoral paulista (onde o caiçara é sempre um caipira); o Vale do Paraíba, as serras da Mantiqueira, de Quebra Cangalha. do Mar, de Paranapiacaba; o planalto paulista; a zona bragantina; a ‘depressão periférica paulista isto é, a zona de transição entre os solos arqueanos e os solos paleozóicos, principalmente ao longo do Rio Tietê (englobando a zona de Piracicaba. dos Campos Gerais etc.), a zona do antigo ‘Caminho do Mato’, que levava ao Sul do país e por onde vinham as tropas de muares para serem vendidas na feira de Sorocaba; o planalto de Franca, caminho para as minas de Goiás e Mato Grosso (Queiroz, Bairros Rurais Paulistas) 

Pois foi vindo de Minas e passando por Farinha Podre (Uberaba) que, ao entrar na Província de São Paulo pelos lados de Franca, Augusto de Saint-Hilaire começou a ver caipiras pela estrada e a escrever sobre eles anotações de passagem. 
 
Imagem: Lenine

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